Por Pedro Moraes
“A deusa da minha rua / tem os olhos onde a lua / costuma se embriagar / Nos seus olhos eu suponho / que o sol num dourado sonho / vai claridade buscar”. Como na música interpretada por Nelson Gonçalves, os olhos de Guiomar Moraes, ou simplesmente, Guió, que atualmente está com 86 anos, embriagaram a lua e o coração de muitos homens, que dedicaram suas vidas a venerar uma das mulheres mais lindas e especiais que o recôncavo baiano conheceu.
Quem não conhece a bondosa dona Guió, está convidado a conhecê-la, através de uma a viagem para diversos momentos da sua vida. Nosso primeiro destino será sua cidade natal, São Félix, interior da Bahia, em 15 de janeiro de 1923.
A cidade crescia numa época dourada. Era o apogeu do recôncavo baiano. Fábricas de charuto, chocolate e tecido movimentavam a economia local que tinha sua produção escoada pelos trilhos da antiga companhia Ferroviária Leste do Brasil. Modelada no divino barro, nasce Guiomar, sob a regência de aquário, numa manha onde o sol expunha toda sua força. Paulino, seu pai, sempre comentava que “o astro iria iluminar a essência de sua filha até o fim de seus dias”.
Guió perdeu a mãe com apenas dois anos. Desde então, se apegou ao pai e até hoje conta com muito orgulho suas histórias. Paulino era espiritualista, vivia alegre e sempre que encontrava algo que lhe chateasse colocava o chapéu na cabeça e dava uma volta para arejar a mente. Chegou a ser vereador da cidade e ficou conhecido por usa inteligência e uma capacidade de liderança que poucos tinham. Filho de português, não resistia a uma companhia feminina e acabou ficando viúvo por quatro vezes. Guió nasceu do primeiro casamento e teve cinco irmãos: Rita, Lourival, João, Celso e Antônio. Lourival, João e Antônio já faleceram.
Sua família vivia de um armazém, localizado no centro da cidade. O comércio era sortido, vendia de tudo, desde o fumo de corda, usado até para limpar dentes, à carnes defumadas. Paulino cuidava do local. Nas horas vagas, uma boa partida de dominó e um bate-papo com os amigos ajudavam a passar o tempo.
Guió se recorda com alegria dos ensinamentos de seu velho, falecido há 30 anos. Segundo a musa, tudo que aprendeu deve ao saudoso pai, o homem que a deixou como herança o fascínio pela leitura e a arte de levar a vida com naturalidade; sempre disposto a resolver os problemas com um belo sorriso.
Como criança sua vida não poderia ter sido melhor. Subia em jaqueiras, corria nos sítios da família e tomava banho nos rios. A diversão era completa quando estava na companhia das amigas e de sua doce avó Matilde. Guió quando criança era peralta. Na escola se destacava com uma das melhores alunas, sendo muito admirada pela professora Maria da Glória, que não se cansava de apertar suas fofas bochechas.
Perfume De Mulher – Aos 12 anos sua beleza já começava a se destacar na cidade e ainda com mente de menina, não entendeu o que significava uma carta que recebeu de Martinho, um homem de aproximadamente 40 anos, pedindo-a em casamento. A inocente Guió escondeu na bolsa a carta e levou com todo cuidado para sua prima Julieta, que ficou horrorizada com a proposta, se sentindo obrigada a mostrar para Paulino.
Martinho, que se considerava amigo da família foi chamado pelo pai da garota a uma séria conversa. Depois de ser repreendido, o envergonhado apaixonado seguiu viagem ao Rio de Janeiro. A amizade entre Paulino e Martinho se encerrou naquele momento para sempre.
A pequena garota de bochechas rosadas cedeu lugar para uma morena, com um rosto de beleza indescritível. Com cerca de 1.70m, olhos castanhos e cabelos cor de cobre, Guiomar se tornou uma soberana flor, como descreveu o mestre Pixinguinha, uma musa “divina e graciosa estátua majestosa do amor”. A combinação de várias qualidades em único ser estava radiante a ponto de ofuscar os olhos de quem olhava a “láctea estrela (…) tudo enfim que tem de belo, todo resplendor da natureza”.
Um simples caminhar, ou um mero virar de olhos, era o símbolo máximo de sedução para os são felistas, que não resistiam em vê-la passar. Seu cheiro, aromatizado pela essência francesa, “Isa” era perseguido por admiradores que facilmente se apaixonavam. “A Musa de minha rua” era cantada por apaixonados, seduzidos por seu vulto. Eles viviam numa “rua sem graça / mas quando por ela passa / a ruazinha modesta” virava “uma paisagem de festa / uma cascata de luz” (Newton Teixeira – Jorge Faraj).
Nessa época recebeu um convite para ser a garota Colgate, exibindo o belo sorriso perolado nos rótulos do produto. Mas, segundo Albertina, sua madrasta, uma moça de família não podia aceitar um convite desses.
Certo dia, antes de dormir, Guió foi surpreendida com a primeira serenata. Lá estavam três rapazes. O que cantava, era mais um hipnotizado pela musa do recôncavo, os outros, eram músicos que ajudavam o apaixonado interpretar o clássico da era do rádio, “Rosa”. A voz rouca do rapaz entoava, “Tu és a forma ideal, estátua magistral / oh alma peneral do meu primeiro amor / sublime amor / tu és de Deus a soberana flor”.
A surpresa deixou Albertina furiosa, que achava a cena uma falta de respeito! Porém, Paulino adorou, abriu a janela e pôs o rosto de fora para ouviu a música e ver quem eram os novos admiradores de sua bela filha. Guió sorria, mas como uma perfeita musa, permaneceu dentro de casa.
Muitos foram os apaixonados que tentaram de diversas formas conquistar a atenção de Guiomar. Mas, nunca existiu um mais incansável que Laurentino. O Romeu sem Julieta era um artesão e trabalhava na Leste. Passava o seu tempo livre fazendo diversas obras talhadas em madeira para a amada, enviava perfumes, frutas e declarava seu amor em todos os cantos da cidade. Até que presenciou Guió de braços dados com um namorado desfilando em praça pública! Isso foi demais para ele, o coitado deu uma vertigem, passou mal e foi chorar na casa da musa, aos ouvidos de Albertina.
Não pensem que ele desistiu. Por inúmeras vezes o romântico de São Félix, mandou cartas e bilhetes, mas nunca houve nenhum tipo de resposta. Guió resume com uma frase direta e sem nenhuma possibilidade para uma réplica. ”Laurentino era uma boa pessoa, mas definitivamente não era meu tipo, era muito insistente e não sentia nada por ele”. Reza a lenda que até hoje Laurentino sonha que Guió vire sua Julieta.
A musa do recôncavo coordenava telefonistas de 17 municípios vizinhos de São Félix e enviava relatórios de todas essas cidades para Companhia de Energia Elétrica, que na época, fornecia também o serviço de telecomunicações. Nesse tempo ajudou muitas pessoas. São diversos os casos em que a Dona Guiomar serviu de anjo da guarda para mudar a realidade de pessoas esquecidas pela sociedade. Sua determinação para ajudar o próximo se reflete na quantidade de afilhados que Guió teve. Ao todo foram 25 famílias que confiaram a Guiomar os filhos e filhas.
Em um dia de trabalho, conheceu Amador. Um mineiro com quinze anos a mais, já viúvo. Nada além de uma troca de olhares aconteceu nesse primeiro encontro. Porém, o educado e clássico senhor que passava por São Felix realizando uma conferência na empresa, não resistiu e perguntou a Sr. Botelho chefe da companhia quem era a linda mulher a qual tinha avistado à sua frente.
Amador se rendeu ao sentimento que brotava e conversou com Guiomar, pedindo a moça em namoro. O “sim” como resposta ecoou nos ouvidos do pretendente de tal forma, que logo começou a viajar para São Félix de 15 em 15 dias para se ver a amada. O encontro era formal, e sempre ocorria na sala de Guió, sentados no sofá na companhia de um cachorro, conhecido como “sultão”. Aí do namorado, se ele sonhasse em encostar, o fiel cão de guarda sentava bem no meio do casal e não hesitava em mostrar suas enormes presas a Amador.
O namoro durou dois anos, até que Amador foi até a igreja e marcou sem o conhecimento de Guiomar o casamento. Pouco tempo antes da data, Guió foi surpreendida pelo padre da cidade que veio entusiasmado abraçá-la, contando a novidade.
A marcha nupcial é iniciada, a musa estava deslumbrante, vestia um vestido branco, de renda francesa, exibindo todo o glamour da época. Caminhando como uma diva, desfilou pausadamente de braços dados com o pai indo ao encontro de seu futuro esposo. Muitos choraram de felicidade, porém aquele 2 de março, foi dia de luto para muitos homens apaixonados que nunca conseguiram chamar atenção da musa.
Amador e Guiomar viveram juntos por 37 anos. Em um relacionamento sem aranhões ou qualquer tipo de mácula. Tiveram três filhos e viajaram juntos pelo Brasil e a outros paises. Mesmo bem casada, a musa não deixou de receber galanteios. Certa vez um senhor que Guió ajudava com mantimentos, tomou um porre, e foi a porta de sua casa cantar “Índia os seus cabelos…”. Só ficou nos cabelos, porque a dama fechou imediatamente a porta e o novo apaixonado nunca mais apareceu.
Os ponteiros passaram. O único amor de sua vida, Amador, faleceu com 84 anos em 1994. Guió atualmente mora com seus três filhos, se tornando em sua família um destaque por sua sabedoria e lições de vida, que com firmeza transmite a todos que te cercam. A beleza da carne não é a mesma, mas nos olhos da eterna musa, permanece “a cascata de luz” onde de algum lugar do passado a lua ainda vem se embriagar.