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Assim como em uma projeção cinematográfica, vamos voltar no tempo por 30 anos. Mas nesse filme imaginário, não teremos superproduções norte-americanas e nem o rebuscamento intelectual do cinema europeu, e sim, curtas-metragens realizados com garra e coragem, no semiárido baiano, dirigidos por um “fazedor de filmes”, o soteropolitano de alma sertaneja: Sandoval Dourado.

Filho da artesã de Irecê, Constança, e do bancário aposentado de Canarana, Sinobelino, Sandoval, nasceu em 79. Quando pequeno, passou os seis primeiros anos na capital baiana, até começar uma vida quase nômade, migrando por várias cidades, como Salvador, Itaberaba, Irecê e Andaraí.

Formado em Design pela UNIFACS, sempre gostou de cinema, mas o despertar para sétima arte aconteceu quando morava em Andaraí. “Estavam rodando um filme do lado de minha casa, Tuna Espinheira gravava o longa-metragem Cascalho, então dei para eles todo suporte de informática, montando a rede e daí fui até figurante. Quando olhei aquela iluminação, os profissionais, e toda aquela megaprodução me apaixonei, foi muito interessante”.

Mesmo com o fascínio, o jovem design ficou sem ter contato com a prática cinematográfica por mais três anos, por falta de equipamento. “Foi então que comecei trabalhar com um colega, que foi meu monitor na faculdade. Ele tinha uma produtora de vídeo que fazia filmagens para casamentos, festas e formatura e fui fazer sites para a empresa. Na época, fiquei sabendo de um festival de vídeo da TVE e fiz uma proposta para realizar um curta em Mato Verde de Canarana. Foi dessa experiência que surgiu meu primeiro filme, Amuleto”, conta Sandoval.

O curta-metragem Amuleto nasceu vencedor e conquistou no festival da TVE o prêmio de melhor direção e em Santa Maria no Rio Grande do Sul, o prêmio de melhor vídeo na categoria de até 2 minutos. “Não sei se por competência ou sorte, mas tivemos um ótimo resultado. Foi então que pensei, sem experiência e pouca produção ganhamos de pessoas experientes. Naquele momento que percebi que fazer filmes era o que queria para fazer por toda minha vida”. Amuleto conta a historia de um vaqueiro em 90 segundos, evidenciando seu ciclo de vida, a história gira em torno de um cavalinho que ele guarda como amuleto desde criança.

Em 2007, Sandoval deixou Salvador para morar em Irecê, ao receber um convite de um empresário local, para abrir uma empresa, foi então que surgiu a “Sertão Filmes”. A produtora começou fazendo coisas simples, como filmar festividades, porém de acordo com Sandoval, “essa era só uma forma de ganhar dinheiro, meu intuito mesmo era fazer filmes. Tentei no mesmo ano um curta sobre as lendas do sertão, as famosas livusias. Porém, depois de quase pronto, percebi que ficou muito ruim e fiz questão de apagar tudo”.

“Quando voltei para Irecê as pessoas diziam, você é maluco? Vai sair de uma capital para ir morar no interior e fazer cinema? Mas tem que deixar algum maluco mesmo fazer essas coisas, se não, quem vai fazer? Quero plantar alguma coisa e deixar algo de útil, não adianta passar a vida toda só trabalhando para fazer a feira e morrer fazendo isso, não pretendo ser famoso, mas quero ser reconhecido pelo que faço”, enfatiza Sandoval.

PATUÁ No ano seguinte, a produtora estava com os equipamentos parados, o mercado não estava em uma época boa, mas das dificuldades surgiu a ideia de filmar mais um curta, Patuá. Sandoval convidou parentes e amigos e começaram o novo trabalho. “Começamos a nos reunir, até que minha tia disse para conversar com Sólon Barretto, que ele poderia me ajudar, a principio, relutei. Afinal, não tinha dinheiro para pagar atores, mas para minha surpresa ele me deu o maior apoio e disse: o que você precisar para o elenco pode contar comigo”.

Cena do Filme Patuá

Com a parceria firmada, iniciaram as gravações. As filmagens aconteceram no mesmo local de Amuleto, em Canarana, após quatro dias de muito trabalho, as cenas estavam captadas. Baseado em fatos reais, o filme narra o drama de um sertanejo, onde o pai vai para outra cidade em busca de uma vida melhor, deixando a esposa e dois filhos. Passando por diversas privações a mãe dos garotos conhece um pescador e começa um novo relacionamento. Patuá é um filme bem executado, em todos aspectos, bela fotografia, interpretação, trilha, roteiro e direção. O curta tem um final intrigante, deixando no ar, para o apreciador, diversas possibilidades de conclusão da obra. “O final é trágico. Porém, nem eu mesmo sei o motivo, o final da história é surreal, deixei ele aberto e subjetivo de propósito”.

Patuá que estreou no auditório do colégio modelo em Irecê, ganhou rapidamente o estado e mundo, sendo exibido em vários locais, como, Jacobina e Xique-Xique, Belo Horizonte, Fórum de Cineclubes de Lençóis, Festival Arraial Cinefest de Porto Seguro, Sala Walter da Silveira em Salvador e Rotterdam na Holanda.

“Fiquei sabendo que tinha um festival de filmes independentes e mandei para o “Câmera Mundo” em Rotterdam, mas encaminhamos o vídeo sem pretensões, acreditava que nem ia ser exibido. Fomos selecionados e fui com Sólon para Holanda, o pessoal gostou bastante e mesmo concorrendo com 120 filmes, ganhamos um dos prêmios mais importantes o de “Incentivo Câmera Mundo”, que ele dão ao diretor ou grupo que mesmo com baixo custo conseguiram finalizar o melhor filme. Quando anunciaram os vencedores, não acreditei, fiquei emocionado, pois nunca imaginaria que iríamos ganhar”.

Outro filme do diretor é o curta “Rodagem”, resultado de uma oficina realizada em um distrito de Lapão-BA, de mesmo nome que o filme, onde foram selecionadas pessoas da comunidade interessadas no trabalho. Após as aulas, cada um cumpriu uma função diferente e o resultado foi valoroso. “Senti um compromisso inigualável, das equipes que trabalhei, ela foi a melhor. Não acreditava que iríamos fazer o que conseguimos, deixei tudo na mão deles só fiz a direção. Conseguir plantar uma semente entre eles, a equipe que fez o filme já está filmando outro curta. Espero que daqui a cinco, dez anos muitas pessoas estejam produzindo, esse é meu sonho. Voltei para Irecê não só para produzir cinema, quero incentivar, plantar, para que diversos grupos façam filmes e transformem nossa região em uma referência na área”.

“A fruta e fruteira” é o mais recente curta premiado do diretor. O filme realizado a partir de um convite feito pela escola Edimaster, teve como objetivo concorrer ao festival da Rede Pitágoras em Belo Horizonte. O resultado foi positivo e foi indicado para cinco categorias(trilha, figurino, fotografia, ator e atriz), sendo premiado como melhor fotografia(do próprio Sandoval) e melhor atriz com Marina Andrade.

Influenciado pelos filmes nacionais que trabalham com a temática do sertanejo, Sandoval diz fazer filmes para o povo e não apenas para intelectuais. “Tento fazer vídeos agradáveis, sempre prezando pela técnica, a fotografia mesmo gosto de deixar sempre redondinha”. Atualmente, Sandoval que é assessor da prefeitura de Irecê, está trabalhando em mais um filme: “Minha Vida Não Cabe Em um Outdoor”.

Pedro Moraes

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Criatividade e pluralidade artística podem definir o jovem cineasta, de 17 anos, Alexander Barreto, uma figura promissora que se encantou com o mundo das artes há dois anos e já demonstra potencial para executar belos trabalhos. Convivendo com a arte em casa, influenciada pelo pai Péricles Barreto e o tio Sólon Barreto, ambos nomes conhecidos no teatro da região de Irecê-BA, Alexander realizou três curtas-metragens que disputaram o Prêmio Vitor Diniz, como jovem realizador, no “XIII Festival Nacional dos Cinco Minutos”,  em Salvador. “A Natureza Responde”, “O assalto que não houve” e “Fantasma do Lixo” são obras com preocupação social, debatendo o meio ambiente e violência.  As três produções foram realizadas para o festival e com poucos equipamentos o jovem cineasta se desdobra para participar de todas as etapas de uma criação audiovisual, criando o roteiro, interpretando, dirigindo as cenas, captando som, filmando algumas sequências e editando o vídeo.

O CURTA-METRAGEM “A NATUREZA RESPONDE”, realiza uma reflexão sobre os hábitos de um jovem que no dia-a-dia insiste em destruir o meio-ambiente, mostrando que para toda agressão existe um retorno. O vídeo possui imagens interessantes, criativas e com boas composições de cena, destaco a que o personagem segue em direção a sua “vítima” (uma árvore) e filmando em contra-luz, são evidenciados os detalhes de uma faca passando por um portão de ferro. A edição tem cortes rápidos, com possíveis influências da linguagem do videoclipe e televisão, o roteiro é simples, porém bem elaborado, a interpretação do ator (Alexander) é boa, todavia é preciso ressaltar que o papel não exige muito de suas habilidades. Alexander peca na edição do áudio, utilizando uma trilha alta, em relação a voz e um pouco desconecta das imagens, porém, capta o som ambiente, como ruídos de portas, água e carro com qualidade.

“O ASSALTO QUE NÃO HOUVE” é um vídeo cômico que retrata a noite de dois irmãos gêmeos, mas de personalidades opostas, que ao debaterem sobre a violência são assaltados em casa. O curta ganha um teor engraçado quando a suposta ladra aparece, uma criança baixinha e frágil que enfrenta em um combate marcial os dois irmãos.  Mais uma vez, o vídeo possui boas imagens, os melhores momentos dessa composição ficam em dois pontos. No começo da narrativa onde são efetuados belos closes e na invasão da assaltante onde em preto e branco são intercalados planos abertos e fechados em um bom sincronismo. O roteiro dessa obra poderia ter uma diretriz mais elaborada, pois, fica um pouco óbvio que após debaterem sobre violência e apagarem as luzes vai acontecer alguma coisa. Alexander como ator ganha um novo desafio nesse curta, interpretar dois personagens, essa tarefa ele realizada com sucesso, evidenciando boas expressões faciais, gesticulações e uma dinâmica de texto eficiente. Como diretor e editor, o obstáculo é maior. Em algumas cenas não existe continuidade, fazendo com que o personagem reapareça em lado diferente da cena anterior, em alguns cortes nos diálogos, feitos pelo mesmo ator, as imagens ficam “truncados”.

CONSIDERO “O FANTASMA DO LIXO” o curta mais maduro e elaborado de Alexander. O vídeo realiza um debate sobre o lixo, mostrando a convivência de duas garotas, Ludmila e Nicole, que ao chegar de uma festa jogam papéis no chão e convivem em uma grande bagunça em casa. Ao faltar luz o fantasma se apresenta para dar um “puxão de orelha” nas duas que em seguida mudam o comportamento.

Os três vídeos foram filmados por Alexia Barreto, todos possuem boas imagens, mas em “O Fantasma do Lixo”, existe uma composição diferenciada entres o três, com ótimos movimentos de câmera e uma iluminação (para os equipamentos que a equipe dispõe) bem elaborada. A sonoplastia acerta quando utiliza, em alguns momentos, a mescla entre o silêncio e som ambiente. A trilha é boa e foi executada nos momentos corretos, criando um ambiente de “suspense” no filme. Os cortes de imagem não tiveram grandes desafios, a edição é simples e clássica, mas cumpre o papel. O roteiro é bem feito, intensificando os diálogos e construindo uma história de quatro minutos bem construída. A interpretação cênica dos três artistas (Alana Gondin, Lorena Pinheiro e Alexander) ficou ótima e natural, porém a impostação da voz do “fantasma” poderia ser diferenciada, com mais seriedade e em um tom mais grave.

Uma sequência do filme que comprova as qualidades do diretor é a cena realizada após o desaparecimento do fantasma. Alexander acerta em vários pontos, a trilha começa baixa e vai ganhando fôlego ao decorrer da movimentação de câmera, as imagem são captadas de um bom ângulo(altura do chão), a edição reduz em fração de segundos o tempo dos movimentos, deixando-os mais lentos e realçados, os curtos diálogos funcionam como  informativos de consciência ambiental.

Com alguns erros, naturais pela pouca experiência e muitos acertos, os três curtas apresentados ao festival nacional de 5 minutos por Alexander Barreto, se concretizam com uma amostra positiva do talento do jovem cineasta que tem potencial para realizar trabalhados mais maturados e alçar novas linhas narrativas. Sem dúvidas, fico livre para afirmar: É um excelente começo.

 

Pedro Moraes

O curta Véi Lô e as velas do cruzeiro… de Flavia Vasconcelos e  Pedro Moraes, foi gravado em abril de 2009, na Fazenda Periperi, localizada em Matina (aproximadamente 900 km de Salvador), na Semana Santa, período que os mortos são homenageados. O personagem principal é um senhor de 88 anos, o Véi Lô, que, em uma conversa com sua neta Camila, fala sobre costumes e o ritual de acender velas para os parentes mortos no cruzeiro do cemitério da fazenda.

Durante a conversa – o fio condutor do enredo – é possível observar o comportamento dos antigos moradores do sertão baiano, representados por Véi Lô, no sotaque, na característica física, na vestimenta, no uso do cigarro de palha e o processo artesanal de fazê-lo, evidenciando a ligação íntima com a terra, já que é dela que se tira a palha do milho, matéria prima do cigarro.

Outro tema que valoriza a memória e os costumes do sertanejo baiano é o ritual, feito todos os anos, no período da Semana Santa, por Véi Lô e os seus vizinhos e que é mostrado durante a conversa entre o personagem principal e sua neta. Durante a noite, todos se encontram no cemitério da fazenda e, aos pés do cruzeiro, acendem velas e rezam para os parentes e amigos mortos. A beleza está na devoção e respeito aos mortos, tradicionalmente conservados pelos moradores e na estética das imagens, provocada pelas chamas das velas, que juntas, iluminam o nosso personagem.

Véi Lô e as velas do cruzeiro… é um curta, de gênero documental, que registra a personalidade simples e quase ingênua, porém rica em detalhes, de um senhor sertanejo e a valorização dos seus costumes, que não sofreram interferências do mundo urbano e da modernidade.

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Em Parceria com a jornalista Flávia Vasconcelos, estou finalizando o curta “Véi Lô e as Velas do Cruzeiro”. O vídeo mostra a relação do “Véi Lô” com sua neta,  Camila, que participa de um diálogo envolvente com o avô revelando antigos costumes.

Em breve você vai acompanhar aqui e no blog http://curtaolhodeboi.wordpress.com maiores informações sobre o dia a dia do trabalho realizado por  Diego Lisboa e equipe no curta metragem “Olho de Boi”.

pagadordepromessasO cineasta Anselmo Duarte, diretor do clássico nacional “o pagador de promessas” está internado na UTI do Hospital Universitário da USP. Duarte, de 89 anos, ingressou no hospital na sexta com uma anemia provocada por perca sanguínea na urina (causa ainda desconhecida) e sofreu um infarto do miocárdio, hoje, agravando ainda mais seu quadro de saúde. De acordo com a equipe médica, o cineasta deverá ser transferido para o INCOR.

O Pagador de Promessas ganhou a Palma de Ouro em Cannes (1962) e foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro.

O mestre do cinema de terror brasileiro, José Mojica Marins, está de volta após o aclamado filme a Encarnação do Demônio. Desta vez o diretor e ator, conhecido como Zé do Caixão, vai participar da continuação da série Corpo Estranho de Lourenço Mutarelli, dividida em 20 capítulos, cada um  de 5 a 7 minutos. Os interessados podem acompanhar a história no site: http://www.teatroparaalguem.com.br

Publiquei um texto na BOCC (Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação), gostaria de compartilhar com vocês.

O estudo é uma análise Fílmica realizada sobre o clássico de Murnau, “Nosferatu Uma Sinfonia de Horror” evidenciando suas raízes, com o mito vampiresco e o expressionismo alemão, um movimento que ofereceu o suporte necessário para essa obra se concretizar como um dos maiores filmes da história do cinema. O texto também inclui uma apreciação das conseqüências geradas pela película, que gerou uma infinidade de “filhos” responsáveis por auxiliar Nosferatu a retornar com freqüência como referência estética.

Confiram o texto em: http://www.bocc.ubi.pt/_esp/autor.php?codautor=1732

Por Pedro Moraes

Na década de 80, o mundo cinematográfico estava permeado com uma problemática que surgiu com a efervescência do videocassete, o declínio do público nas salas de cinema e a falta de novas linguagens, desta forma, o cinema estava em crise. Muitos culpados apareceram, entre outros, a televisão. Wim Wenders sensível a esse incerto cenário, desenvolveu um trabalho memorável à época, o documentário Quarto 666.
Durante o festival de Cannes em 1982, Wim Wenders, reuniu em um quarto de hotel 14 diretores, (dentre outros, Godard, Herzog, Spielberg e Antonioni) aclamados pelo cinema comercial e alternativo para responder a pergunta: Qual é o futuro do cinema? Cada entrevistado ficava no quarto com a companhia de uma televisão ligada, câmera de 16 mm e gravador nagra, esse aspecto deixou o filme informal, conseguindo deixar os depoimentos bem espontâneos. Cada cineasta mostrou um pouco de se em um curto espaço de tempo, seja Herzog, tirando os sapatos e desligando a televisão ou Godard que tranquilamente fumava seus charutos, enquanto respondia com maestria a indagação.
Muitas respostas são memoráveis, o filme que é feito de forma simples, é rico em reflexões. Para Antonioni, não existe problema com a passagem do tempo, é necessária uma adaptação. Já Ana Carolina, enfatizou que o cinema eletrônico não interessa ao verdadeiro artista, Herzog, comenta que fazer cinema é mostrar o que não podemos ver.
A edição em DVD lançada no país, vem com um extra interessante, que possibilita ouvir os comentários de Wenders gravados vinte anos depois, auto- criticando a obra e explanando sobre cada entrevista. Destaque para os comentários sobre a entrevista de Herzog, Antonioni e de Fassbinder, que veio  falecer três semanas após a gravação.

Por Pedro Moraes

“A minha missão, além d’eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes… Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário, esperto ao contrário tem, mas inocente não tem não”. (Estamira)

Estamira é um documentário brasileiro que marca a estréia do fotógrafo Marcos Prado como diretor cinematográfico. Realizado em 2004, o filme retrata a vida de Estamira, uma senhora com problemas mentais, que trabalha no Aterro Metropolitano de Gramacho. A personagem é fantástica e possui uma forma única e enigmática de analisar o mundo, misturando palavras sábias e reflexivas com um tom alucinado e psicótico.

O documentário consegue oferecer o poder da fala, a quem supostamente não tinha e a personagem não desperdiça essa oportunidade. Estamira apesar de seu visível desequilíbrio, contesta e crítica instituições como a religião, capitalismo, educação, sistema de saúde e família. O discurso é voraz, é um desabafo de quem sofreu e está com o grito tolhido por muitos anos.

Dificilmente o espectador que tiver contato com essa obra, vai sair da exibição da mesma forma que entrou, pois Estamira não é apenas uma personagem, ela é um estado de espírito, uma expressão da revolta contra uma sociedade sem inocentes, cheia de “trocadilos”. Como define a personagem: “Eu Estamira sou a visão de cada um. Ninguém pode viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira. (…) A criação toda é abstrata. O espaço inteiro é abstrato. A água é abstrato. O fogo é abstrato. Tudo é abstrato. Estamira também é abstrato”.

Estamira sempre teve uma vida dura. Com nove anos ela sofreu com o assédio sexual do avô, que também molestava a sua mãe, aos doze anos o mesmo a deixou em um prostíbulo, sendo obrigada a se prostituir por muito tempo. Neste local, Estamira conheceu o pai do primeiro filho, que gostou dela e resolveu retirá-la do ambiente que estava para juntos tocarem a vida. Porém, a felicidade não reinou por muito tempo, o marido de Estamira tinha várias amantes e o casamento não deu certo. A personagem ainda se casou outra vez, com um imigrante italiano, contudo, ele pecou com a mesma moeda, e as inúmeras traições geraram brigas violentas deixando a personagem apenas com os filhos.

O filme realizado em preto e branco e colorido utiliza os depoimentos de familiares para contar a vida da personagem. São momentos tocantes, é muito interessante ter contanto com o forte laço afetivo dos filhos para com ela, em especial a Maria Rita, que foi levada pelo irmão mais velho para ser adotada por uma outra família. A garota apesar de ter vivido bem com a segunda mãe, se mostra triste e de certa forma desprezada em seus depoimentos, por ter convido longe de Estamira. Percebemos que apesar dos problemas que a mãe tem, Maria Rita preferia ter ficado com ela, superando todas as dificuldades juntas.

Carolina, a outra filha de Estamira é a principal testemunha nos depoimentos sobre a história da mãe. De acordo com ela, sua avó por parte de mãe também tinha problemas mentais, e um dos principais ressentimentos que Estamira tinha, seria ter deixado, sob a influencia do ex-marido, a mãe no famigerado Hospital Psiquiátrico Pedro II. Carolina afirma que o erro que a mãe cometeu ela não pretende repetir, pois ela acompanha a dor que Estamira sente ao se lembrar disso e não quer essa sensação para ela.

Logo no começo do filme, Marcos Prado deixa algo bastante evidente, o que vamos assistir não é algo comum. Ainda nos créditos, inicia uma trilha psicodélica, mesclando na mesma cadência um som percussivo que se repete exaustivamente ao lado do entoar de uma única nota. Essa música composta por Décio Rocha enriquece a sequência de imagens realizadas em preto e branco, com uma textura do antigo formato super oito. Enquanto isso a câmera mostra lentamente o caminho para a “casa” de Estamira, focando alguns detalhes do ambiente que refletem a profissão e estilo de vida da personagem.  Essa sequência realizada com maestria é de grande importância para introduzir o espectador no mundo de Estamira.

Quando saímos da casa da personagem a câmera segue a Estamira até seu ambiente de trabalho o aterro metropolitano de gramacho, nessa parte os planos se alternam entre abertos e fechados. Nessa sequência, o plano aberto é usado para mostrar a trajetória dela até o local, assim como expor as primeiras cenas do “lixão”. Já o fechado realça as marcas do rosto das pessoas que trabalham no local. Elas expressam cansaço, dor e sofrimento. Acompanhando essas imagens o som ganha mais um elemento, um vocal quase desgovernado, que aumenta o ar de estranheza. A sonoridade flerta entre o mundo erudito, tonal, com alguns sons ligados ao oriente.

Ao retratar esse ambiente, Prado faz isso com perfeição, movimentos panorâmicos e os planos abertos mostram as paredes quase infinitas de lixo, são muralhas do desperdício, do escombro e da insensatez governamental que não disponibiliza de políticas ambientais para cuidar do que joga fora. As cenas são chocantes, esse enquadramento do real, traz o espectador para aquele ambiente e escancara a disputa entre urubus e homens que travam uma batalha no lixão para sobreviver. Neste ambiente hostil, que até cadáveres são encontrados, Estamira e tantos outros trabalham em condições desumanas, inalando o gás metano que é um resultado da decomposição do lixo e sem a devida segurança eles tem o contato com os detritos que ali se encontram.

A bem realizada captura do som ambiente é fundamental para que esse filme tenha o impacto que conseguiu produzir. O trabalho de Leandro Lima consegue realçar os movimentos e transmitir sensações, pois todos os detalhes são capturados na medida certa, seja no barulho das moscas, o fogo do metano, ventos, trovões, motor das caçambas de lixo ou o bater das asas do urubu, toda essa sonoridade nos ambienta cada vez mais com esse mundo.

Nos primeiros diálogos do filme, já aparece um conflito que é recorrente em todo o documentário. A narrativa flerta com o submundo de Estamira, que duela entre a personagem e a figura de Deus. Muito nervosa ela desabafa, “que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra e não sei o quê?! Não é ele que é o próprio trocadilo? Só pra otário, pra esperto ao contrário, bobado, bestalhado. Quem já teve medo de dizer a verdade, largou de morrer? Largou? Quem ando com Deus dia e noite, noite e dia na boca ainda mais com os deboches, largou de morrer? Quem fez o que ele mandou, o que o da quadrilha dele manda, largou de morrer? Largou de passar fome? Largou de miséria? Ah, não dá!”. De acordo com a filha ela era uma pessoa religiosa até ter sido violentada sexualmente em diversos momentos da vida. A personagem então criou um desalento e culpa Deus pelas infelicidades do mundo e fica enfurecida quando o nome do Criador é citado.

Um ponto de grande destaque nessa obra é uma metáfora que o diretor faz desta relação. O diretor mostra ao decorrer do filme, diversas cenas externas em preto e branco, revelando Estamira duelando com a natureza, a razão e loucura. Neste ambiente as sombras são ressaltadas e imagens quase que apocalípticas são produzidas, com ventos fortes, raios, trovões ou um mar revolto em confronto com as fortes palavras da personagem e seu corpo. A câmera é sempre bem posicionada, ela fica no centro do conflito, oferecendo mais dramaticidade e realidade para as imagens, que mostram o vento arrastando ferozmente o lixo. Nesses momentos de conflito com o “pai astral”, como a personagem diz, acontece nas cenas uma guerra simbólica de caráter poético contra Deus.

Grande parte das cenas desse filme foram filmadas com a luz natural, já que o principal ambiente do documentário é o aterro sanitário. Prado como bom fotógrafo, realiza uma boa exposição, realçando os tons de pele dos personagens, assim como capturando os contrastes com perfeição. Ele gosta desse efeito, e assistimos os urubus pretos rasgando os plásticos brancos, assim como as chamas do metano se destacando com a escuridão da noite. As imagens desse filme são muito bem executadas, em um momento, Prado filma o sol e fecha o diafragma da lente ao máximo dando um efeito muito belo, deixando o céu negro com uma luz no centro que dissipa raios na escuridão. O contra-luz também se destaca em várias cenas, uma das mais bem realizadas mostra em preto e branco a silhueta do corpo da personagem em contraponto com a luminosidade do céu.

Retratar a loucura é algo complicado e o filme de Marcos Prado percorre sobre essa linha tênue entre o excesso. Em alguns momentos do filme os devaneios de Estamira são mostrados com muita freqüência e muitas vezes sem necessidade. Contextualizar que Estamira sofre de alguns problemas é essencial, mas o filme tem partes em que se resumem os ataques psicóticos escancarados ao um público que não deveria ter tanto acesso a algo tão intimo. Parece que o diretor se encantou pela personagem, mas quem não se encantaria diante de uma Estamira? Apesar disso, o filme não perde seu brilho e se concretiza como uma bela obra poética de extrema valia, que veio a acrescentar para cinema brasileiro.

Por Pedro Moraes

Quem disse que o Brasil não faz bons filmes de terror?

À Meia-Noite Levarei sua Alma é o primeiro longa-metragem do cineasta brasileiro José Mojica Marins. O filme que é considerado o primeiro clássico de terror do cinema nacional, marca o surgimento de um personagem que se tornou folclórico no imaginário popular do cinema brasileiro, o Zé do Caixão. A película no formato preto e branco foi realizada em 1964 em plena ditadura militar e contesta de forma inteligente diversos dogmas culturais como a moral e a religiosidade.
A obra apresenta uma narrativa clássica, com a linearidade de inicio meio e fim bem definida. Os planos, iluminação e efeitos sonoros estão vinculados ao estilo do cinema dominante, encadeados de acordo com a necessidade de causa e efeito gerando impactos no espectador.
A aparência de Zé do Caixão surge com influências de diversos filmes clássicos do cinema, dentre outras, películas de duas fontes obrigatórias, o terror norte-americano e o expressionismo alemão. Podemos dizer que a estética se assemelha mais ao cinema de Hollywood, porém o personagem é mais semelhante ao eu expressionista.
Zé do Caixão possui as unhas semelhantes ao Nosferatu de Murnau (1922), e vestimentas típicas de Caligari e Cesare em O Gabinete do Dr. Caligari de Robert Wiene (1919). Visualmente, o personagem criado por Mojica também se assemelha a Béla Lugosi em Drácula (1931) e Chaney em London After Midnight (1927), ambos os filmes, de Tod Browning.
Apesar de não ser um filme inovador para a arte cinematográfica universal, À Meia-Noite Levarei sua Alma é algo diferente para o Brasil. Mojica traz para o país um mundo diegético diferente dos realizados por diretores brasileiros, pois no cinema nacional a esfera de terror nunca foi uma tradição cinematográfica. Por isso, Zé do Caixão ainda soa para os espectadores com um estranhamento, porém essa diferença atraiu uma grande bilheteria para o personagem, fazendo do Mojica um diretor de intensa produção nas décadas de 60, 70 e 80.
Os filmes de Mojica aparentemente ingênuos, analisado, por muitos como películas que apenas exibem um sangue barato, conseguiram por diversas vezes, burlar a censura de um país que vivia intensamente um período de ditadura militar, apresentando cenas de violência e nudez. Em plena repressão, À Meia-Noite Levarei sua Alma expõe um personagem anárquico, Zé do Caixão é um homem que não respeitava nada e menosprezava as autoridades da cidade e a instituições da sociedade como religião e família.
A película começa com um diálogo que vira rotineiro na obra de Mojica. O diretor usa um personagem do filme, neste caso uma cigana, para desafiar o espectador e contar um pouco sobre o que irá aparecer nas telas. Conversando com a câmera e utilizando frases de efeito do tipo: “vão embora, não assistam esse filme”, Mojica usa esta tática para criar um vínculo de verossimidade com quem esta assistindo o filme, fazendo da ferramenta um atalho para posteriormente na narrativa os fatos ficarem mais accessíveis ao sentimento do medo. Essas cenas são regadas a uma trilha sonora sombria e incrementadas com gritos e sussurros. Com poucas exceções, as imagens citadas são feitas pelo próprio diretor, que sempre aparece acompanhado por belas mulheres com vestimentas góticas ou semi-nuas.
Vale salientar que além do terror a obra no Mojica é marcada com fases de filmes de pornô-horror. E podemos encontrar diversas películas como Perversão e Inferno Carnal que além de tentar atrair o público para ver crimes, mortes e assassinatos, usa da morte ligado ao sexo para mexer com o fetichismo subconsciente do espectador, misturando elementos como sadismo, sexualidade e terror.
À Meia-Noite Levarei Sua Alma narra a vida do agente funerário de uma cidade pacata e conservadora chamado Zé do Caixão; um ser expressionista que tem suas emoções levadas ao extremo. O agente funerário é um ser odiado pelos moradores da cidade, que o considera uma figura demoníaca sendo uma aberração doentia e psicótica.
O personagem é obcecado pela idéia de propagar sua existência com um filho, esse ideal faz com que ele realize uma busca constante por uma companheira perfeita. Essa perfeição não é atrelada a sentimentos ou desejo de construir uma família, a busca é feita apenas com os critérios de não ter fé, ser bela e burlar de alguma forma o padrão de mente feminina da época.